TRAJETOS, MAPAS E DESEJOS NA AULA DE FILOSOFIA

           TRAJETOS, MAPAS E DESEJOS NA AULA DE FILOSOFIA
           Prof. Dr. Sandro Kobol Fornazari


         Inspirado no texto “O que as crianças dizem”, de Gilles Deleuze (1997), em Crítica e clínica, venho tecer algumas considerações sobre o processo de planejamento e realização de aulas de filosofia que possa levar em conta, por um lado, a complexidade do meio escolar onde essas aulas são ministradas e, por outro, que tanto aquilo que se propõe ensinar quanto o que se dispõe a aprender sejam mobilizados pelo desejo.
            I. Cada escola é feita de substâncias, qualidades, potências e acontecimentos. Esse conjunto constitui uma espécie de subjetividade própria da escola, uma singularidade que cabe à professora ou ao professor descobrir para que possa se colocar num primeiro momento em consonância com ela.
            As substâncias são seu corpo docente e discente, a direção e sua estrutura de apoio, os demais servidores ou funcionários, a comunidade de que a escola faz parte, o edifício escolar e o seu entorno, a estrutura pedagógica, como laboratórios, auditório, bibliotecas, quadra esportiva (presentes ou ausentes), etc.
            Para cada um desses elementos, há uma ou mais qualidades que se podem associar a eles. Por exemplo, o horário de funcionamento e o acervo da biblioteca; se a localização é favorável ou não às estudantes e aos estudantes (ela pode ser favorável durante o dia, mas desfavorável à noite levando em conta os deslocamentos de estudantes que trabalham); se o pessoal de apoio, como de limpeza, é em número adequado; se a arquitetura do prédio favorece ou não os encontros e os deslocamentos ou se é marcada por restrições de acesso, grades, etc.; se há uma organicidade entre a direção, a coordenação pedagógica e as professoras; se há um controle burocrático das atividades em sala de aula, e em que medida; como é a distribuição do quadro de matérias. E assim por diante.
            Quanto às potências, elas podem estar em alguma ou algumas dessas substâncias e qualidades ou quem sabe no seu conjunto. Por exemplo, pode não haver uma biblioteca em funcionamento, mas há um espaço e um acervo disponível. A chegada ou a saída de duas ou três novas professoras ou professores, o seu encontro com uma nova proposta da direção podem ser o início do desenvolvimento de uma potência do corpo docente até então apenas latente. Ou uma reivindicação estudantil que se expande como um desafio para a melhoria da escola como um todo. Ou uma demanda por participação pela comunidade onde a escola está inserida. A potência diz respeito ao devir da escola e à possibilidade de desobstruir os fluxos de desejos e anseios pela educação ali presentes.
            Há também acontecimentos, ruidosos ou silenciosos, que dizem respeito a cada escola. Se a escola está inserida numa área sob controle do tráfico, ou numa região em que a violência policial é frequente, não há como dissociar isso de tudo o que se passa na escola, interferindo nas suas substâncias, qualidades e potências. Se a escola tem uma participação histórica em greves e rebeliões estudantis, com sindicatos e grêmios organizados e atuantes, esse é um acontecimento no qual toda a escola está inserida. A escola pode ter também um histórico de sucesso em práticas alternativas de ensino, com um grau de compromisso das professoras e dos professores, da direção, da coordenação pedagógica acima do normal. Mas, pode ser que a escola esteja completamente voltada apenas ao cumprimento de metas e com o objetivo de pontuar nos rankings educacionais, numa adesão acrítica aos ditames tecnocráticos, na busca por bônus salariais, etc. e esse será o acontecimento a ditar o ritmo dessa escola. Há ainda acontecimentos que extrapolam a singularidade das escolas e podem se impor disruptivamente, como no caso da pandemia de SARS-COV- 2, com sua necessidade de distanciamento social, ou a vigência de um governo com propensões autoritárias ou até mesmo fascistas que se empenha em interferir na liberdade de ensino.
            Assim, cada escola se apresenta como um meio bastante complexo. Para quem está apenas começando a lecionar, essa complexidade pode ser altamente desafiadora e difícil de lidar. No entanto, como se inserir numa escola sem conhecer minimamente esses aspectos que a constituem, sem mergulhar nesse meio e conhecer os seus desafios?
            De maneira que o primeiro passo para planejar uma aula (no caso que nos interessa aqui, uma aula de filosofia para o Ensino Médio), diz respeito ao trajeto para se chegar à sala de aula (pressupondo que essa aula será dada numa sala de aula). Não se trata apenas do trajeto para a escola, na observação do bairro, da vila, da rua, na escuta das necessidades das pessoas que habitam essa região, mas também do trajeto no interior do prédio, pela sala dos professores, pelo pátio, pela observação do mundo a partir de suas janelas, etc., até a chegada na sala de aula. Mais que isso, é fazer o trajeto a partir do seu olhar próprio, observando e se pondo à escuta das estudantes e dos estudantes, das professoras e dos professores, da diretora ou do diretor, da coordenadora ou coordenador pedagógico, do pessoal de apoio; percebendo como as pessoas se tratam, como são as conversas, sobre o que se discute nas reuniões, qual a motivação das estudantes e dos estudantes, que interesses demonstram, quais são os seus sonhos e os seus anseios. Aos poucos se descortinarão as substâncias e as qualidades da escola, com um pouco mais de esforço, logo suas potências irão se fazer presentes. E disso tudo é possível que se possa entender o acontecimento no qual essa escola está inserida nesse momento, acontecimento que age sobre todo o restante, motivando ou inibindo os seus processos.
            II. Paulo Freire ressalta a importância crucial para as professoras e os professores em aprender a escutar paciente e criticamente o outro, como requisito para combater a postura autoritária da professora ou do professor que fala impositivamente (FREIRE, 2002, p.135). Entendo que isso vale não apenas na relação professor/a-aluna/o, mas em todas as relações que existem na escola. Freire sustenta a necessidade de não fazer do outro um objeto de seu discurso, mas falar com o outro como um sujeito da escuta, mesmo quando as posições são divergentes. Isso deve valer para a relação professor/a-aluna/o, evidentemente, mas também entre a direção e a coordenação pedagógica, entre a direção e o/as professore/as, entre a coordenação e o/as professore/as e entre o/as professore/as. É preciso aprender a escutar o outro. O educador autoritário se comporta como dono da verdade e do tempo para discorrer sobre ela. Ele exige o silêncio, isto é, exige que sejam silenciadas as experiências próprias de suas educandas e de seus educandos. Ao invés disso, a educação que busca a autonomia é aquela em que quem tem o que dizer saiba não ser o único ou a única a ter o que dizer, e a ter o direito de fazê-lo. Assim, a educadora e o educador devem motivar o processo dialógico, de modo que quem escuta também fale, pergunte, responda, problematize.
            Desse modo, o trajeto que precisa ser feito pela professora e pelo professor é, como vimos, composto pela observação e pela escuta dos espaços e das pessoas que por ele circulam e que o ocupam. Nesse primeiro sentido ele é extensivo. Noutro sentido, porém, o trajeto é intensivo, isto é, ele é composto pelos afetos que são propriamente a densidade desses espaços, comportando os desejos, os sonhos, os medos, as alegrias e as tristezas, presentes nas paisagens, nas pessoas e nas relações entre as pessoas, sobretudo da/os estudantes. Nesse duplo sentido, o trajeto precisa ser feito e refeito tantas vezes forem necessárias, porque é dele, a partir dele que a professora e o professor terão de construir um ou mais mapas com os quais poderão se situar.
            Um dos mapas desse trajeto ao mesmo tempo extensivo e afetivo (intensivo) da escola poderíamos chamar de plano de ensino. E, a partir desse mapa mais amplo, há alguns outros que permitem tornar mais nítidos os seus detalhes: os planos de aula. Os planos de ensino e os planos de aula são mapas desse trajeto que pacientemente se observou e se escutou e que recolhe as experiências, os afetos, os saberes e as vivências de quem compõem a escola, especialmente da/os estudantes. Esses mapas, é importante observar, serão sempre esboços, sempre refeitos na medida em que se mergulha na espessura desses trajetos e na medida em que se modificam as substâncias, as qualidades, as potências e os acontecimentos que permeiam aquela escola e que se apresentam para a observação.
            Assim, as aulas não podem ser pensadas fora desse contato com a experiência singular da escola e dos trajetos que lhe são próprios. Esse meio concreto, em toda sua complexidade, tem de ser levado em conta na escolha dos conteúdos, da didática, dos critérios de avaliação, da problematização conceitual que é própria das aulas de Filosofia. O planejamento das aulas, portanto, deve ser capaz de levar em conta o contexto multidimensional da escola, com especial atenção para o grupo de estudantes, suas potências e suas fragilidades, seus anseios e seus receios, levando em conta inclusive que mesmo numa sala de aula podem existir diferenças com as quais será preciso saber lidar diferentemente.
            III. Mas, isso não é tudo, o mapeamento desses trajetos extensivos e intensivos está longe de ser tudo no que diz respeito ao planejamento das aulas. Há um outro aspecto, igualmente importante, que não pode jamais ser negligenciado e que não pode ficar de fora desse planejamento: aquilo que diz respeito à formação da professora e do professor, às suas preferências teóricas, às suas motivações em ensinar. É preciso que aquilo que se propõe a ensinar seja mobilizado pelo desejo, pela paixão em ensinar. Porque deve ensinar com paixão, a professora e o professor devem ter a plena liberdade na escolha do que vai ser tratado em sua aula, quais os textos e os conceitos que serão mobilizados ali. Haverá, portanto, um encontro singular entre os mapas dos trajetos e o gosto próprio de quem ensina, suas preferências, suas paixões.
            É dessa maneira que se pode despertar o desejo de aprender. A aprendizagem não é o resultado de uma tecnologia educacional, não existem técnicas, fórmulas, receitas para aprender, justamente porque aprender é da ordem do desejo. Não basta para a/o estudante estar atenta/o, ter a intenção de aprender com quem se dispõe a ensinar, se não houver desejo. Pode-se eventualmente memorizar algumas informações que não serão mais que isso: informações presentes na memória por algum tempo.
            Além disso, quem ensina não tem qualquer controle sobre o que é aprendido, como enfatiza Sílvio Gallo (2013), inspirado por Deleuze. Ensinar é ser capaz de despertar o desejo de aprender. Se houver esse desejo, pode-se aprender qualquer coisa, como bem mostrou Jacques Rancière (2017) no excepcional O mestre ignorante. Mas, para ensinar a paixão de aprender, é preciso a paixão no ensinar, ensinar com paixão, mostrar como um determinado tema, certo problema, certas relações mobilizam o pensamento, a paixão de pensar por parte da professora ou do professor. Bell hooks (2017, p.258) se refere a Eros como a energia que pulsa em sala de aula, revigorando as discussões e excitando a imaginação.
            É esse agenciamento entre o ensino mobilizado pelo desejo e o desejo de aprender o substrato de todo aprendizado.
            O planejamento das aulas de filosofia, portanto, deve ser capaz de apreender e de conectar, em sua complexidade, essas duas dimensões do processo educacional:
            a) O mapeamento dos trajetos extensivos e intensivos que constituem a experiência escolar;
            b) o agenciamento dos desejos que perpassam a relação entre quem se propõe a ensinar e quem se dispõe a aprender.
            Mas, os planos não são as aulas. Para além deles, as aulas, justamente porque impulsionadas pelo desejo que mobiliza os temas e os conteúdos, podem almejar ir muito mais longe. Elas podem produzir outras conexões problematizadoras ou desdobrar conexões menores, podem produzir devires, criações, resistências, variações de muitos tipos, na língua, nos conceitos, nos problemas, nas teorias; elas podem inclusive contraefetuar os acontecimentos, tendo em vista, no mais, o enfrentamento com as questões vitais que se apresentam tanto coletivamente, quanto individualmente, inapreensíveis no mapeamento inicial ou que só se apresentaram no transcorrer. Desse modo, a própria aula pode chegar a convocar a um novo acontecimento através do trabalho com os conceitos.


Referências bibliográficas

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______. O que as crianças dizem. Crítica e clínica. Tr. Peter Pelbart. São Paulo: 34, 1997, p.73-
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Paz e Terra, 2002.
GALLO, S. Deleuze & a educação. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
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B. Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. 3ª ed. Tr. Lilian
do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 2ª ed. São Paulo:

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